sexta-feira, 7 de junho de 2013

CARA-METADE, ERRO OU CAPRICHO DA NATUREZA?

 CARA-METADE, ERRO OU CAPRICHO DA NATUREZA?
Benedito Gomes Tosa
Revista Brasil Ornitológico 54
Arquivo editado em 02/05/2004
Eurico Santos, em Zoologia Brasílica, volume 5, página 271, descreve minuciosamente a pintura de uma avezinha discreta e delicada que agrada nossos olhos com sua figura harmoniosa, higiene de penas impecável, o “Sporohila c. caerulescens”, o nosso papa-capim ou coleirinha e que, na íntegra, transcrevemos: 
“...são de cor negra, a fronte, faces, cabeça, nuca e a região que fica por baixo da mandíbula inferior, em forma de gola, “coleira”, separando assim a garganta do peito. São de cor cinzento-ardósia, quase negro, o dorso, retrizes e coberteira da causa, quer as remiges. Uma raja que parte da raiz da mandíbula inferior, bem como a garganta, o peito, o ventre e uropígio são brancos ou levemente-esverdeado, tarsos anegrados. 
As fêmeas são pardo-oliváceo-claras, com asas e cauda mais escuras, parte inferior clara, lavada de ocráceo e o centro do ventre, branco”. 
Complementamos belíssima descrição acrescentando que o bico da fêmea é escuro e o tarso cinza-claro. 
Apareceu e vive sob observação no “Recanto dos Pássaros”, propriedade de José Valmir de Salvi, aqui em Serra Negra, Estado de são Paulo, um exemplar de coleirinha que aguçou a curiosidade dos amantes da ornitologia na região. 
“Cara-Metade”, nome de registro do pássaro que, por erro ou capricho da natureza é um ginandromorfo perfeito, pois mostra exatamente na linha mediana do corpo, a divisão dos caracteres sexuais. 
A parte direita é masculina com todos os detalhes da plumagem acima descritos sendo que a “coleira” (parte do corpo que originou o nome popular da ave), cessa na linha mediana do pescoço sem que uma pena, por minúscula que seja, avance a demarcação; a parte esquerda reveste-se com traje feminino e, segundo Helmut Sick, autor de “Ornitologia Brasileira”, à página 755, isto, “...reflete a regra de que em aves apenas o ovário esquerdo é desenvolvido...” 
No mesmo trecho, Sick, o cientista das aves, ante a quem o mundo se curva por sua sabedoria, experiência, conhecimento, pesquisas, trabalhos divulgados, revela ter visto, em toda sua vida, apenas dois exemplares com esta anormalidade morfológica. 
O terceiro exemplar, quem sabe, é o que hoje vive em Serra Negra. Os observadores de pássaros de nossa região confessam nunca terem ouvido falar. Até João Rosa nos seus oitenta e poucos anos de atividades ligadas à sondagem e observação de pássaros silvestres, desconhecia. 
Interessante é que a aproximação de uma fêmea, à parte masculina de “Cara-Metade”, este reage num galanteio carinhoso, exibindo a plumagem e fazendo tremular a assa direita enquanto solta o canto com todas as notas de macho-criado. Entretanto, quando um  macho é colocado próximo ao seu lado feminino mostrando interesse e entusiasmo para um  início de “namoro”, o lado masculino volta-se, ameaçando briga como se o intruso tivesse avançado sua zona de influência como acontece em meados da primavera e durante todo o verão com qualquer macho acasalado ou preparando o berço dos filhotes. 
Quem dera, estas linhas ou mesmo as fotos conseguissem transmitir, neste instante, a precisão do fato inédito que gostaríamos de deixar registrado. 
Entretanto, diante de apenas um exemplar avariado desta ave tão comuns pelo Brasil afora, cujos bandos numerosos chegam durante o inverno e início da primavera, dóceis, mansinhos em nosso quintais, hortas e jardins em busca de alimento, sentimos o tamanho da fragilidade do nosso conhecimento. 
Que distância nos separa da verdade? 
“Cara-Metade” é afinal, erro ou capricho da natureza? 

 
 
 
 

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